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Kendorrhea

Random and useless personal thoughts on things that have nothing to do with nobody, like kendo, iaido and the like
Sunday, January 11, 2009

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A internacionalização do kendô - Parte 1


Esse é um trecho de um artigo EXCELENTE que foi publicado em setembro de 1996, na revista Kendô Jidai.

São as opiniões do hanshi Inoue Masataka sobre um tema que volta e meia vem à tona: a internacionalização do kendô.

Como este ano (2009) teremos o Mundial de Kendô no Brasil, achei que era mais do que oportuno disponibilizar esse artigo em português.

O artigo é divido em três perguntas, quais sejam:
1) O kendô pode participar das Olimpíadas?
2) Baseando-se no judô e nas outras modalidades, poderia dar a sua opinião sobre a internacionalização do kendô?
3) O Campeonato Mundial de Kendô pode continuar como está?

Neste post, vou publicar a primeira parte. As outras duas partes serão publicadas mais tarde (espero que não muito mais tarde!).

Antes de mais nada, sobre o hanshi Inoue Masataka: Nascido em Fukuoka, em 1907 (suponho que atualmente já esteja falecido - se estiver vivo, é digno de Guiness), é hanshi de kendô e kyôshi de iaidô. Foi, entre outras coisas, Conselheiro do Zen Nippon Gakkô Kendô Renmei, a Federação Japonesa de Kendô Estudantil.

E vamos para o artigo.

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(...)

--- 1) O kendô pode participar das Olimpíadas? ---

Para que os jovens possam sonhar, e para que os membros possam ter esperanças, atualmente (N.T.: isso em 1996, mas não deve ter mudado muito desde então) há várias iniciativas para a internacionalização do kendô, incluindo a inclusão do kendô como modalidade olímpica e a difusão mais pró-ativa do kendô fora do Japão. Entretanto, a minha conclusão sobre este tema é de que a participação do kendô nas Olimpíadas é algo impossível de acontecer. Mais do que isso, eu acredito que, baseando-se na essência do kendô, ele não pode nem deve participar.

Por quê? Como todos sabem, as Olimpíadas são regidas pela Carta Olímpica, que compreende todas as diretrizes fundamentais relativas aos Jogos.

E, no primeiro capítulo da Carta, está escrito que "os Jogos Olímpicos serão realizados a cada quatro anos, sendo que o evento deverá convidar atletas do mundo todo, dentro das condições e situações mais equânimes possíveis".

Essas "condições e situações mais equânimes possíveis" significam a igualdade da difusão e da força da modalidade. Entretanto, no caso do kendô, há pouquíssimos países que oferecem a prática e há um desnível extremamente significativo em termos de população e nível de habilidade, de acordo com cada país. Assim, o kendô não preenche as condições para ser considerado uma modalidade olímpica, sendo o motivo principal para a sua não-inclusão nos Jogos Olímpicos.

(N.T.: A Carta Olímpica (Olympic Charter) parece ter sido alterada desde então. O documento disponível atualmente no site do COI não faz nenhuma mênção a esse trecho a que o hanshi se refere. Vide http://multimedia.olympic.org/pdf/en_report_122.pdf )

Mesmo que o kendô possa solucionar a difícil questão da falta de difusão em muitos países, o kendô possui uma característica inerente que impossibilita de maneira definitiva a sua inclusão como modalidade olímpica.

Essa característica é "ausência de critérios absolutos para o ippon".

Os Jogos Olímpicos são uma competição extrema, em que a diferença entre cada competidor é milimétrica. Por outro lado, o kendô possui uma visão bem menos extrema, em que um golpe pode ou não valer um ponto. Dada essa visão, é impossível que ele possa sobreviver aos embates ferrenhos entre os países, que podem ser vistos durante os Jogos.

Dentro das modalidades olímpicas, há algumas cuja presença é obrigatória, como as modalidades atléticas, aquáticas e ginásticas. Mas os demais podem ser adicionados ou descartados de acordo com as decisões do COI (Comitê Olímpico Internacional). Assim, mesmo modalidades recentes como o judô podem virar modalidades olímpicas, desde que tenham o aval de países poderosos, como os Estados Unidos e a Europa.

Entretanto, o kendô está em uma situação completamente distinta com relação ao judô. Comparativamente ao judô, o kendô possui uma difusão, compreensão e interesse muito reduzidos dentro da população mundial. E é muito lógico afirmar que a participação do kendô nos Jogos Olímpicos é um sonho muito distante.

É claro que há a esgrima ocidental, uma modalidade que foi inclusa nos Jogos Olímpicos desde cedo. Ela possui três categorias: sabre, florete e espada, sendo que o sabre é o mais similar ao kendô.

Mas, mesmo o sabre da esgrima ocidental possui diferenças fundamentais com o kendô, quais sejam a postura interior, a atitude com que uma luta é realizada, e a forma como a arbitragem é feita.

Um kenshi obtém um ponto (ippon) quando ele acerta o espírito do oponente. Por outro lado, na esgrima, o esgrimista obtém um ponto quando causa um toque, um impacto determinado no corpo do oponente.

Por isso, em uma luta de esgrima podem ser vistos cabos diversos, que detectam o impacto da arma no corpo do oponente e acendem uma luz para marcar o ponto. Não há nenhuma presença de elementos mais espirituais, como o seme, o kuzushi ou ainda o kyojitsu.

(N.T.: seme é a energia e a postura de ataque, kuzushi é a desestruração física e mental do adversário e kyojitsu é o conceito de vazio e cheio. Todos são conceitos básicos e muito presentes no kendô)

Essa é a diferença fundamental entre o kendô e a esgrima olímpica. A esgrima possui um critério objetivo e absoluto de pontuação - a lâmpada acesa - e assim a arbitragem pode sempre ser feita de maneira clara. Assim, ela pode ser inclusa sem problemas nos Jogos Olímpicos.

Todavia, o kendô não possui critérios objetivos e absolutos de pontuação e a decisão sobre quem é o vencedor é sempre feita de forma subjetiva e freqüentemente obscura para os leigos. Assim, é impossível que o kendô seja incluído em um evento tão competitivo quanto as Olimpíadas.

Além disso, como eu já escrevi,
eu acredito que, baseando-se na essência do kendô, ele não pode nem deve participar nos Jogos. Isso porque há o risco do kendô se tornar puramente competitivo, implodindo pela base o espírito que rege o kendô.

Eu tenho esse sentimento a cada vez que eu assisto às lutas de judô olímpico. O judô de antigamente era algo realmente belo e forte.

Os dois lutadores se postavam altivos como árvores de cedro, segurando firme no colarinho e na manga, atacando e não deixando ser atacado. E o golpe decisivo, executado quando a energia do lutador atingia o máximo, era algo maravilhoso que enchia os olhos, fazendo-nos entender como deveria ser uma arte marcial tradicional japonesa.

Esse golpe decisivo (ippon) era a essência do treinamento de vários anos e era uma manifestação da atitude decisiva, na qual se empenhava a sua própria vida, uma característica bastante nipônica.

Entretanto, o judô de atualmente (N.T.: 1996 - não mudou muito desde então) luta de uma forma que nós leigos não conseguimos aceitar muito bem. Os lutadores não tentam projetar o adversário desde o começo. Ao contrário, eles mantêm seus quadris bem longe do oponente, tentando puxá-lo para o chão e dominá-lo utilizando a força bruta. Há muita coisa no judô atual que eu creio que levaria às lágrimas o sensei Kano (N.T.: Jigoro Kano, fundador do judô Kodokan) e o judô tradicional.

Até mesmo o judô mudou completamente quando foi para os Jogos Olímpicos. Imagine se o kendô for para as Olimpíadas e passar a ser puramente competitivo? Eu tremo só de pensar no quão horrendamente desfigurado ficaria o kendô.

Diz-se que o kendô é um embate para pessoas de elevada nobreza. Ele é um combate travado entre dois espíritos. Ter uma atitude de batedor de carteiras, tentando roubar um ponto a qualquer custo é algo muito distante do kendô e muito distante do desenvolvimento interior que o kendô deve propiciar.

Ver essa bela chama do espírito do kendô ser apagada impiedosamente no grande palco mundial que são os Jogos Olímpicos é o que mais me deixaria triste e é algo que deve ser impedido a todo custo.

O kendô sem alma é um canário que não sabe mais cantar. Um kendô cuja essência for deturpada e cuja tradição for extinta é algo que não possui nenhum valor e não merece existir. Deve-se evitar a todo o custo para que a emenda não saia ainda pior que o soneto, no que os japoneses dizem como "matar o boi ao remover seus chifres".

Não nos é admissível que matemos o kendô ao removermos a sua essência para que possa ser admitida como uma modalidade olímpica. Não devemos nos deixar seduzir pelas trombetas olímpicas; ao contrário, agora é a hora de contemplarmos silenciosamente a beleza tradicional que é inerente ao kendô.

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Esse é o fim da primeira questão. Depois eu pretendo postar as demais partes desse artigo.

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