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Kendorrhea

Random and useless personal thoughts on things that have nothing to do with nobody, like kendo, iaido and the like
Friday, February 20, 2009

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Considerações do sensei Ogi Manboku


Eu sei que ainda estou devendo as outras partes do artigo sobre a internacionalização do kendô. Mas antes disso, gostaria de disponibilizar algumas considerações muito interessantes, feitas pelo sensei Ogi Manboku, 9o dan Hanshi.

Ogi sensei nasceu em Fukuoka em 1897, dominou os estilos Katôda Shinkage-ryû e Tsuda Ichiden-ryû aos 18 anos. Formado em kendô pela Dai Nippon Butokukai, discípulo do Hanshi Naitô Takaharu. Professor da Kokushikan em 1939, participou do shiai perante o Imperador em 1940. Imagino que ele já tenha falecido agora. Caso contrário, ele deve estar com 102 anos de idade...

A revista Kendo Jidai publicou dois artigos com ele, sob a forma de bate-papo. Os artigos possuem algumas colocações interessantíssimas feitas por Ogi sensei e Egami Goro sensei, que acompanhou junto o bate-papo. E gostaria de disponibilizar aqui alguns trechos.

Os artigos estão publicados nos números 8 de 9 da revista Kendo Jidai, de 1987. A tradução é minha, como de costume.

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"(...) Eu disse ao Narazaki[1]: você morreu uma vez. Você morreu e renasceu. Quando você pratica zen, você é capaz de morrer com o mesmo espírito de Dôgen e Hakuin[2]. Esse é o ponto importante do kendô. Se você chegar nesse nível, você não precisa mais praticar zazen. Esse é o nível que o kendô te leva. Se você não errar nesse ponto, eu não tenho mais nada a dizer.(...)"

"(...) As pessoas de hoje em dia, independentemente da sua graduação, só treinam para ter uma boa aparência e causar uma boa impressão. Elas não tem o kendô que deveriam construir para si mesmas.(...)"

"(...)Os kendoka de hoje em dia, desde os de grau mais elevado até os de grau mais baixo, não treinam de verdade.(...) O verdadeiro kendô nasce de um treinamento levado às últimas conseqüências. E através de um treinamento rigoroso, é possível construir um espírito inabalável e um caráter de respeito.(...)

Eu treinei durante três anos, dos 18 aos 20 anos, na sede da Butokukai[3]. O treino daquela época é algo inimaginável às pessoas de hoje. Pode-se dizer que nós realmente púnhamos a nossa vida em jogo no treino. (...)

Hoje em dia, não treinam mais de verdade, ou seja, não treinam mais colocando a sua vida em jogo, ao contrário das pessoas de antigamente. Bom, não é exatamente um bom exemplo, mas imagine que o adversário veio com um tsuki. Então, você também também dá um tsuki, para não perder dele. Cada men, cada tsuki, cada golpe era como se fosse uma luta de verdade com espadas de verdade.

No começo, você fica com medo do tsuki. Mas se você persevera no treinamento, você deixa de sentir medo. Você tem que estar livre do medo e do terror sempre, independentemente do adversário. E isso é fruto do treinamento.

As pessoas de hoje em dia não treinam dessa forma. E mesmo assim, elas ensinam as pessoas. Isso é algo que causa ainda mais problemas. Veja um sandan dos dias de hoje. Ele é muito pior do que um shodan de antigamente, mas ele já vira um sensei e passa a ensinar às pessoas. Por isso, só fica trocando golpes, como se bastasse golpear para tudo estar certo.

Se a pessoa que ensina vem com essa postura de trocar golpes, então a pessoa que aprende vai achar que isso é o kendô. É por isso que o treino não gera um bom kendô.(...)"

"(...)(Egami sensei diz) Bom, é melhor praticar o kendô como ele é hoje do que não praticar nada. Mas o kendô das pessoas de hoje está longe do Caminho. Mas o que está errado? O treinamento atual não é o treinamento de verdade, sim. Mas acima de tudo, o espírito do kendô, a essência de tudo, não está verdadeiro.

Sendo seres humanos, é compreensível que as pessoas desejem obter graduações, honrarias e posição social. Mas essa ânsia está muito exagerada. Temos que começar corrigindo esse ponto. Por outro lado, se começar a implicar muito, ninguém mais pratica kendô. Por isso, precisa-se de tempo para construir um bom kendô, um ambiente digno para o kendô.

O que eu falei agora vale tanto para o mundo da política quanto para o mundo da educação. Esse é o estado em que o mundo está agora. Mas pelo menos, gostaria que as pessoas do kendô se dedicassem ao aprimoramento pessoal, priorizando mais a parte interior do ser humano.
Isso é algo muito importante, mas os senseis da antiga não verbalizam em palavras. Eles não querem verbalizar. Mas eu acho que eles têm o dever de falar sem reservas sobre essas coisas.

(...)(Ogi sensei diz) Sim, deve-se dizer o que deve ser dito. Um kendoka não pode ficar sem falar o que precisa ser falado, com medo de receber represálias. Pelo menos, as pessoas do 8o dan para cima, devem dizer claramente a verdade incontestável, usando palavras das quais o universo inteiro não se envergonharia. E isso é algo muito importante para melhorar o kendô de atualmente.(...)

Ultimamente, até as crianças do primário dizem coisas como 'eu não sei tal coisa, porque não me ensinaram' ou 'eu não sei tal coisa porque nunca me falaram'. Isso, no final das contas, vem da falta de treinamento para aperfeiçoamento como ser humano."

"(...) Já faz um bom tempo, mas certa vez, eu disse em uma reunião: 'imaginem que tem dois kendoka, que mantêm um bom maai entre eles. E um deles vence no seme e passa a pressionar o adversário. Este não consegue mais se manter no seu maai e retrocede três, cinco passos. Se isso acontecer, aquele que recuou deve dizer 'eu perdi'. E os árbitros, ao verem essa situação, devem dar ippon àquele que pressionou'.

Eu defendi isso, mas uma certa pessoa disse: 'sensei Ogi, mas isso não é viável. Como é um shiai, você tem que golpear o adversário. O ponto tem que ser válido por golpear o adversário, e não o contrário.'. Esse foi o argumento que me foi dado.
(...)
Olha, no kendô, no caso de um bushi, uma vez que você saca a espada, você tem que matar o adversário. Mas o verdadeiro kendô consiste em você ser capaz de levar a uma situação em que você não precise mais matar o adversário. Não é? A pessoa que falou aquilo para mim não entende essa verdade.(...)"

"(...)Você não pode criar nenhuma espécie de mal. Para isso, você precisa da coragem correta. E, para desenvolver a coragem correta, você precisa treinar corretamente. Acertar o oponente usando de subterfúgios, ou usar de técnicas e estratégias para vencer o shiai não é o treino correto. Você pode fazer essas coisas a sua vida inteira, mas você nunca vai ser capaz de desenvolver a coragem correta em benefício de todos.

Quando você tem a certeza correta de que está fazendo a coisa certa, então você ganha uma coragem inabalável e não recua diante de nada. Mas, para isso, você precisa do desenvolvimento adquirido através de um treinamento correto.(...)

Por isso, você pode treinar o quanto quiser para aprimorar suas técnicas para ganhar shiai. Você pode treinar o quanto quiser nas suas habilidades em golpear o oponente. Tudo isso não passa de kenjutsu, técnicas de espada. Todo o seu treino fica limitado a técnicas. Somente quando você tira essa sujeira chamada "técnica" da sua espada é que aparece o "caminho" da espada. Claro que falar é fácil, fazer é difícil. Mas eu empenhei a minha vida para chegar a esse ponto.(...)"

"(...) Muito tempo atrás, quando o Saimura sensei[4] ensinou Kendô Kata, ele disse: 'em princípio, o Kendô Kata é um conjunto de movimentos pré-estabelecidos executados a duas pessoas. Mas o kata é um shiai. Você tem que executar o Kendô Kata como se fosse uma luta de verdade.'(...)"

"(...) O Kendô Kata não pode ser modificado em nenhuma circunstância. Não é algo para ser modificado. Eu ouvi boatos dizendo que as pessoas da comissão de kendô kata haviam mudado algumas coisas do kata, para falar que fizeram alguma coisa. Isso não foi nada bom. (...)

(O repórter pergunta) Existiria alguma situação em que o Kendo Kata poderia ser mudado?(...)

(Ogi sensei responde) Não existe absolutamente ninguém nos dias de hoje que entenda kendô tão bem a ponto de ser capaz de mudar o Kendo Kata. Enquanto não surgir um novo Miyamoto Musashi ou um Yamaoka sensei[5], ninguém deve ousar colocar as mãos no Kendo Kata.(...)"

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Notas:

[1] Masahiko Narazaki, 9o dan hanshi, discípulo de Ogi.
[2] Dôgen: fundador do Budismo Soto Zen. Hakuin: um dos maiores monges do budismo zen da ordem Rinzai.
[3] Dai Nippon Butokukai, a organização que regia as artes marciais tradicionais japonesas antes da Segunda Guerra Mundial.
[4] Saimura Goro, 10o dan hanshi.
[5] Yamaoka Tesshû, um dos maiores espadachins da Era Meiji.


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